SIGNIFICA...

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fundamentos da moral.

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LEI: Preceito ou regra estabelecida por direito; Norma, obrigação.

JUSTIÇA: Prática e exercício do que é de direito.


1 de abr. de 2011

Morar carioca também é na favela.

Todas as favelas vão ter intervenções de arquitetos até 2020. Mas o plano Morar Carioca também quer mexer nos bairros formais. A novidade é pensar a cidade como um todo, a que todos devem ter acesso. 

 Por Alexandra Lucas Coelho. 

Num edifício com mais de cem anos, que em tempos alojou os geradores para os bondinhos do Corcovado e do Pão de Açúcar, uma plateia de arquitectos está a ouvir dois sociólogos sobre como mudar o Rio de Janeiro. É um plano ambicioso, com o Mundial de Futebol de 2014 e, sobretudo, os Jogos Olímpicos de 2016 no horizonte. Mas não se esgota nisso: quer ir até 2020, constituindo todo "um legado social" das Olimpíadas. E, ao contrário de projectos anteriores, tem um nome deliberadamente genérico: Morar Carioca. Porque a proposta é pensar a cidade como um todo, favela e bairro formal. 

Para isso, 40 ateliers seleccionados por concurso vão trabalhar diferentes zonas da cidade. E boa parte deles está hoje neste auditório do Instituto de Arquitectos do Brasil para ouvir as conclusões de Maria Alice Rezende e Marcelo Burgos, investigadores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) contratados pela prefeitura para desenvolver um quadro socioeconómico das favelas.


Houve uma etapa de seminários e debates, agora trata-se de anunciar a síntese. E Maria Alice Rezende começa por destacar a importância de experiências anteriores no Rio, como o Favela-Bairro, até agora o maior projecto de requalificação urbana em favelas da América Latina. 

A novidade arranca onde esses projectos ficaram: "Universalizar os direitos de acesso à cidade." Porque o Rio poderia ser a cidade mais democrática, com a praia como praça, mas continua a ser uma cidade dividida entre os bairros formais e os morros ocupados, e isso reflecte-se no acesso desigual aos bens da cidadania. 

"Um pacto em torno da universalização", resume Maria Alice Rezende, perante a plateia. "Eis o momento em que temos de dizer que é esse o entendimento do Morar Carioca. O programa refere-se à cidade como um todo, e não só porque há fragmentos de cidade entre as favelas. Estamos a falar da reconstrução de um quarto do Rio de Janeiro."

Meta gigante, que terá de envolver universidades, ONG, líderes políticos, moradores de favelas e dos bairros, articulando vários segmentos de poder. "O estado democrático assumiu as suas funções levando para dentro dele lideranças que lutaram pelos direitos. Então, hoje, algumas formas de luta estão nas secretarias [governamentais], no movimento das mulheres, no estatuto racial. Não estamos começando de uma tábua rasa."

215 favelas

Idealmente, o que acontecerá é "um processo de construção de autonomia", de forma alargada. "Algumas favelas podem já ter a integração de determinados bens, como água canalizada, mas não têm necessariamente autonomia."

E nada funcionará sem a participação das comunidades. "A população pode não ter acesso a dados e leituras técnicas, mas tem uma experiência insubstituível", sublinha Marcelo Burgos. Há que fazer o enlace. "Uma universidade ao lado de uma favela pode ser um actor importante, desde que seja mobilizada."

O momento é "crucial", avisam os dois sociólogos. "É o poder público chegando a um determinado lugar, e quanto mais coeso e orquestrado, melhor." Visões que não comunicam entre si terão de ser postas em diálogo. "Há uma tendência de enclausuramento da favela, das próprias lideranças, e importa reforçar as autoridades locais", diz Marcelo. "A população tem de se sentir representada naquela obra. Não deveríamos desperdiçar a oportunidade de ter 40 arquitectos produzindo dados sobre a cidade. Quanto maior o grau de isolamento, menos civismo."

Vários dos arquitectos aqui presentes já trabalharam no Favela-Bairro e sabem das dificuldades no terreno. Sabem que uma favela não é igual a outra, que os contextos podem mudar de forma decisiva, e que na maioria dos morros o poder real ainda é o tráfico. Também por isso, a experiência prévia em favelas contou para a distribuição das zonas pelos ateliers. 

Numa primeira etapa, serão feitas intervenções em 40 núcleos urbanos próximos das zonas olímpicas, "contendo 215 favelas, das quais 185 constituem 50 complexos e 30 favelas isoladas", explica ao P2 Isabel Vasconcelos Porto, da Secretaria de Habitação da prefeitura do Rio de Janeiro, o organismo que encomenda o projecto. "O Morar Carioca atingirá todas as favelas do território municipal, o que significa que estarão incluídas as zonas Norte e Oeste [as mais pobres], enfim, tudo o que até agora não tenha sido submetido a qualquer tipo de intervenção." Do Complexo do Alemão à Cidade de Deus, do Morro da Providência, que é a primeira favela do Rio, ao Complexo da Penha, passando por Juramento ou Tijuca. O total estimado de domicílios é de 87.867.

"Ao terminar esta fase, outros agrupamentos serão seleccionados, e mais outros, e assim por diante, até 2020", completa esta responsável. "Levar cidade a todos os assentamentos precários até 2020 é a meta que se constitui no legado social dos Jogos Olímpicos."


Renascimento?

"Há toda uma história de grandes projectos no Rio", situa Maria Alice Rezende ao P2, depois do encontro com os arquitectos. "Mas, antes, eram coisas localizadas, problemas, enclaves. Agora, trata-se de um olhar geral. Assim, durante uma década, seremos capazes de realizar uma grande transformação urbana e social do Rio de Janeiro." 

Por que é que agora é possível e até aqui não foi? "Porque há dinheiro, porque há uma conjugação importante entre poder federal, estatal e municipal, não há uma disputa." Ao contrário do que aconteceu durante anos. "E há o acréscimo da experiência."

No entanto, estes académicos evitam falar num renascimento. 

Capital durante dois séculos, o Rio entrou em queda nos anos de 1960, quando o poder político mudou para Brasília. Depois, São Paulo tornou-se o poder económico. Ao Rio restava património, cultura e beleza, mas faltou dinheiro para manter e estimular tudo isso. A ideia de decadência instalou-se, e o discurso paulista acentuou-a. 

"O parâmetro era o modelo bem-sucedido de São Paulo e o Rio tinha ficado para trás", sintetiza Marcelo Burgos. "Não conseguimos encontrar a nossa vocação. Era uma cidade no meio do caminho. Isso fez com que, em 1995/96, se procurasse redefinir estratégias para que o Rio assumisse de novo um protagonismo, como palco de grandes acontecimentos. Um plano estratégico inspirado em Barcelona. Foi definido um horizonte e um conjunto de grandes eventos. Já tinha havido a Eco 92, uma boa experiência, como marco do que o Rio era capaz, além da natureza." E o primeiro fruto desse plano foi a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007.

"Não gosto da palavra renascimento, porque é apologética", explica Burgos. "E este processo de redefinição pode levar a um desencanto. O Rio pode tornar-se mais burguês, mais comum, com os enclaves a serem empurrados para fora. A própria UPP [Unidade Pacificadora de Polícia, que está gradualmente a ocupar as favelas] pode levar a uma expulsão dessas populações." Tal como a "chegada intensa de recursos" fortalece "ainda mais o controlo da elite dirigente sobre a cidade", diz Marcelo. "Trata-se de uma tendência que somente poderá ser temperada se os segmentos populares da cidade se organizarem para disputarem o direito de participar da definição dos seus rumos." 

Por agora, "a cidade popular assiste inerte ao processo", mas o projecto de cidade do Morar Carioca "é plural", e "a doutrina do direito à cidade opõe-se a processos de segregação e exclusão". É daí que poderá vir "uma energia capaz de temperar o controlo que o mercado e as elites económicas deverão assumir no Rio".

Perante o risco de uma "normalização", a alternativa é "a retomada da organização popular na cidade", diz Marcelo. "Vejo capital social para isso, mas há sérios obstáculos relacionados sobretudo com o acesso à participação política mais livre. O mundo popular carioca é fortemente controlado nas favelas e periferias, seja por máquinas políticas clientelistas, seja por milícias. Sem essa reacção política, dificilmente poderemos encontrar soluções capazes de impedir o processo de "racionalização burguesa" da cidade."Além do problema do tráfico, com o qual a actual política das UPP pretende lidar, o Rio de Janeiro continua a ter problemas de corrupção nas polícias, e um domínio grande de milícias constituídas por ex-polícias, sobretudo na Zona Oeste da cidade. 

"Quanto mais livre e afirmativa for a presença da sociedade carioca na cidade, mais fácil será manter o que ela tem de bom, a sua pluralidade, por exemplo", conclui Maria Alice Rezende. Porque há "uma efervescência permanente" e "o dinamismo popular do Rio é o oposto da decadência". 


Primeiro texto da série "O Rio à espera da mudança, da  correspondente Alexandra Lucas Coelho.