SIGNIFICA...

ÉTICA: Parte da Filosofia que estuda os
fundamentos da moral.

MORAL: Ciência dos deveres do homem.
Bons costumes; Honestidade; Estado do espírito; Modo de proceder com justiça.

DIREITO: O que podemos exigir em conformidade com as leis ou a justiça.

LEI: Preceito ou regra estabelecida por direito; Norma, obrigação.

JUSTIÇA: Prática e exercício do que é de direito.


3 de mai. de 2009

A Criatividade da Favela e a Omissão Jurídica



Morro da Favela — 1924óleo/tela 64 X 76 cm Assin:"Tarsila 1924" Col. João Estéfano, SP

O problema ocupacional é antigo no Brasil e, de modo especial, no Rio de Janeiro. Já na primeira década republicana, encontramos dados que comprovam uma inequívoca e desastrosa falta de política pública capaz de administrar problemas sociais que estavam então surgindo e que trariam, como uma de suas conseqüências mais sérias, a ocupação sem estrutura cidadã e desordenada do solo.

Como a cidade do Rio de Janeiro era, naquela época, a capital econômica, política e cultural do País, todos os olhos estavam voltados para ela. As mudanças percebidas durante os últimos anos do Império, e que culminaram na abolição da escravatura e na proclamação da República, tiveram, por óbvio, impactos significativos no cenário urbano. Talvez o Rio de Janeiro seja quem mais tenha sofrido as conseqüências1.

A transformação de natureza demográfica foi a que mais ressaltou, pois houve uma alteração da população em números significativos de habitantes, sem falar da composição étnica e da estrutura ocupacional. É sabido que, com o fim da escravidão, cresceu o número de desempregados e subempregados, pela quantidade de mão-de-obra lançada no mercado sem condições de absorvê-la. Um grande êxodo ocorreu, proveniente da região cafeeira do Estado do Rio, associado ao processo de aumento da presença estrangeira, em especial de portugueses2. Na primeira década da República, a população quase dobrou. A cidade teve que absorver quase 200 mil novos habitantes na virada do século.

Os problemas habitacionais se intensificaram quantitativa e qualitativamente. Grande parte das camadas populares, em conseqüência, vivia em condições bastante precárias. A “absoluta falta” de casas já tinha sido objeto de observação, em 1892, pela Sociedade União dos Proprietários e Arrenda-tários de Prédios, que atribuiu à imigração a responsabilidade pelo fato3.

A população menos favorecida, vítima principal do crescimento urbano desordenado, aglomerava-se em moradias populares no próprio centro da cidade, muitas delas habitações coletivas, ou nos subúrbios, vales, várzeas, mangues, escarpas de montanhas e morros. As primeiras áreas favelizadas já tinham se formado, nas últimas décadas do século XIX, nos morros do centro, sobretudo nos de Santo Antônio, Castelo e Providência4.

A formação de favelas foi, prima facie, uma solução imediata para a questão habitacional no Rio de Janeiro. Mas o que deveria ou poderia ter sido apenas uma forma provisória de habitação passou, com o tempo, a ser uma forma completamente socializada de viver no universo da cidade.

Às vésperas do Estado Novo, surge o Decreto n° 6.000, de 1° de julho de 1937, verdadeiro código de obras, em que, pela primeira vez, aparece no texto de um diploma legal o termo “favela”, para o qual é até mesmo oferecida uma definição formal. O decreto tem intuito claro: todos os esforços devem ser direcionados para a extinção dessa modalidade de moradia. De acordo com o artigo 349,

“A formação de favelas (grifo nosso), isto é, de conglomerados de dois ou mais casebres regularmente dispostos ou em desordem, construídos com materiais improvisados e em desacordo com as disposições desde Decreto, não será absolutamente permitida.”

Não sabemos o que é pior: ser a favela uma lacuna jurídica, ou uma categoria jurídica de ilegalidade. E afinal, a favela é um problema ou uma solução? Depende, é claro, de onde estejamos. Em regra, para o morador da favela, é a única forma possível de moradia; para os mais favorecidos, um desconforto no convívio.

Embora a moradia seja direito social positivado no art. 6º da Constituição de 1988, a busca pelo “direito de morar” dá lugar a inúmeras situações que merecem uma análise científica mais depurada, quando não será difícil perceber, entre tantas questões, a ratificação do alijamento de categorias habitacionais não reconhecidas ou desprezadas pelo Estado.

Assim é que nos deparamos com o denominado “direito de laje”, comumente aceito em favelas do Rio de Janeiro. Esse “direito de laje” se atualiza quando um morador primitivo vende a outra pessoa o “direito” de construir moradia sobre a laje de sua casa. Tal “direito” é admitido entre as partes mesmo quando o “contrato de venda” ocorre em situações especiais, como por exemplo quando o futuro morador primitivo do terreno de superfície vende sua laje sem ter ainda construído sua casa ou sem sequer ter uma laje pronta. Nesses casos, o vendedor usa o valor da venda da laje para construir sua casa. O comprador da laje, por sua vez, adquire o mesmo “direito” e mais tarde poderá ou não vender a laje que fica na cobertura de sua moradia.

Também decorre do "direito de laje" a pluralidade de construções de unidades autônomas, edificadas sobre a laje do morador primitivo, como as quitinetes, que podem ser vendidas ou alugadas. Essa realidade imobiliária tem grande avanço na ocupação do espaço urbano nas favelas do Rio de Janeiro, manifestando-se, inclusive, como uma forma de especulação e provocando significativa circulação de capital nas comunidades.

Outra característica dessa realidade é que a administração das demandas resultantes desses tipos de moradia é feita pela Associação de Moradores, onde ocorre o registro de nomes, endereços e "propriedades". Na medida em que as aquisições imobiliárias são ali registradas, constituem-se em “propriedades” de seus "donos", tal como, no modelo estatal, o registro oficial da escritura de compra e venda no Registro Geral de Imóveis configura a aquisição do direito de propriedade e sua conseqüente transferência. Ou seja, o modelo estatal é significativamente copiado nessas urbes, onde a nova modalidade de registro de aquisição de propriedade é completamente legitimada pela comunidade.

Na verdade, as funções da Associação de Moradores não se limitam apenas a reconhecer as "aquisições" de terrenos e de lajes; ela exerce também um papel judicante, encarregando-se de solucionar os conflitos que decorrem dessas “aquisições”.

Tudo isso acontece pela omissão do Estado em reconhecer formalmente tais categorias habitacionais e, conseqüentemente, implementar políticas públicas efetivas para a viabilização de moradias dignas para os brasileiros. Creio que seria um bom passo rumo à concretude da cidadania desses atores sociais não fecharmos os olhos para a realidade, mesmo que ela não seja do nosso agrado.

Creio, também, que tal percepção da realidade poderá contribuir para trazer à tona as muitas questões envolvidas no "direito de laje", que apresentam novidades inusitadas a serem contempladas pelos juristas. Talvez possamos encontrar uma solução reconhecida legalmente para esse "direito" no ordenamento jurídico brasileiro. A sensação que tenho é de que não se pode visar a um resultado favorável para esta intenção apenas com os conhecimentos jurídicos, porque eles correm o risco de ficar além dos limites do direito posto na atualidade brasileira. Sugiro, desta forma, lançar mão da Antropologia, para que esta, com seus métodos e os avanços que tem acrescentado ao Direito, conceda-nos a graça de contribuir para uma difusão lúcida (Clifford Geertz, 2006), visando a despertar a sensibilidade jurídica daqueles que aceitem o desafio de permitir que todos os brasileiros tenham o reconhecimento legal de suas moradias legítimas.


Cláudia Franco Corrêa é advogada, professora de Direito Civil, Mestre e Doutoranda em Direito pela UGF/RJ.